COMO O HOMEM INSPIROU A BÍBLIA?

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Miguel Manuel - Jornalista
Miguel Manuel - Jornalista

Se perguntar a algum cristão sobre a importância da bíblia nos seus pensamentos, convicções e acções, certamente, ele responderá que o livro mais lido em todo mundo é a fonte das suas crenças e orientações de vida, por conter as leis de Deus, que inspirou homens. Por outro lado, muitos crentes dos países de matriz cristã, hoje em dia, crêem que a bíblia que têm nas suas bancas é exactamente uma reprodução fiel do que se escreveu, nos primórdios. A larga maioria  acredita que a bíblia foi o primeiro conjunto de livros que abordou as inquietações sobre Deus e o homem.

Vale lembrar que os judeus ficaram cativos na Babilónia por cerca de 70 anos, desde 609 A.E.C. Foram libertados pelos persas, governados por Ciro. Nos últimos dez anos desse exílio, começaram a produzir os primeiros manuscritos, quando esses decidiram fundar uma nação unificada e com uma história que os orgulhasse. Os judeus dessa época eram nómadas e sentiam a necessidade de se fortalecer e criar sua própria história. Ciro permitiu que os judeus voltassem a sua terra, patrocinou a reconstrução do templo, organizou a economia e decretou que passassem contribuir para o dízimo. Os líderes hebreus eram orientados pelo rei persa. A volta a Jerusalém foi gradual; muitos decidiriam ficar em Babilónia, porque já haviam organizado suas vidas. O próprio profeta Jeremias aconselhou muitos a ficarem por lá.

Quer dentro da Babilónia quer em Israel, os judeus estavam sob influência cultural, económica e política persa. Essa proximidade deixou marcas profundas na cultura judaica, tal como a literatura e modelo económico. A moeda usada para depositar no templo era persa, com o rosto de Ciro e o nome do Deus judeus, Javé, que tinha acabado de ser adoptado pelos judeus. A língua aramaica, a falada por Jesus é resultado da língua persa tardia.

Líderes judeus  como Josias, Josué, Ezequiel e Esdras governavam sob influência das políticas de Ciro. Eles acreditavam que o rei persa tinha sido enviado por Deus e que os seus decretos eram emanações divinas. Porém, Ciro não era crente do Deus de Israel. Portanto, muitos dos textos do antigo testamento, surgiram dessas leis, apresentadas ao povo  como se fossem vindas do céu.

Voltando ao últimos dez anos de cativeiro, na Babilónia,  os hebreus começaram a escrever textos baseados nos contos dos seus ancestrais( por isso os fariseus eram muito apegados à oralidade, que diziam ser a pura verdade dos antepassados), boa parte das histórias eram baseadas nas mitologias suméria e babilónica, descritas nos livros de Artahsis e na Epopeia de Gilagamesh, escritos 3000 anos antes, que deu origem ao que hoje conhecemos como Antigo Testamento.

Se perguntar a algum cristão sobre a importância da bíblia nos seus pensamentos, convicções e acções, certamente, ele responderá que o livro mais lido em todo mundo é a fonte das suas crenças e orientações de vida, por conter as leis de Deus, que inspirou homens. 
Se perguntar a algum cristão sobre a importância da bíblia nos seus pensamentos, convicções e acções, certamente, ele responderá que o livro mais lido em todo mundo é a fonte das suas crenças e orientações de vida, por conter as leis de Deus, que inspirou homens.

Nesses dois livros, já havia as histórias da criação do universo, da criação do homem feito de barro, que passou a viver  numa floresta que faz lembrar o jardim do Éden, sua relação com os animais, a interferência de uma mulher para a sua perdição, bem como os acontecimentos do dilúvio. Os sumérios, povo de onde nasceu Abrão, são das mais antigas civilizações do mundo e produziram muitas mitologias e histórias sobre questões que se tornaram crenças religiosas pelo mundo até os nossos dias. Milhares de anos antes da existência dos povos judeus,  eles já falavam sobre a vinda de seres à terra, chamados Anunnakis( filhos do deus Anu)  e sua ascensão aos céus. Uma narrativa que estará na base do que  a bíblia, mais tarde falou sobre anjos e neflims.

Os judeus foram colonizados pelas culturas de  vários impérios da Mesopotâmia,( Assírios, acadianos,  persas e babilónicos), para além da cultura africana dos egípcios, tendo por isso, absorvido muitas crenças de muitas fontes que influenciaram seu modo de pensar, agir e cultuar, tal como acontece com qualquer povo colonizado.

Já estabelecidos como uma nação, dividida em várias tribos, fariseus, Zoroatras, Saduceus, Essénios, etc., não havia uma crença unificada, por isso, cada autor de alguns livros escrevia mediante a sua visão de mundo e cultura local.

Diferentemente do que muitos pensam ,hoje, os manuscritos não foram feitos no mesmo período nem de forma organizada, com o objectivo de ser um livro único. Eram as narrativas isoladas, em intervalos de tempo entre 30, 50 90 anos, de pessoas  que escreviam sobre a forma como viam o meio à sua volta, baseados nos mitos que ouviam de antepassados e as suas próprias vivência e ansiedades. Só noventa anos depois da morte de Jesus, eruditos romanos acharam que valeria a pena reunir os vários textos espalhados, para criar um livro que sustentasse a narrativa que solidificaria o projecto político do império romano, começado por Paulo: o cristianismo.

Importa referir que o cristianismo só passou a existir 50 depois da morte de Jesus, quando grupos de pessoas, em Jerusalém, voltou a discutir e reverenciar a história e os ensinamentos do homem morto pelos romanos, visto que a governação romana não dava respostas ao desejo de uma vida próspera ao um povo que vinha de muito sofrimento. Eles, judeus,  apegaram-se às mensagens de esperança de uma vida melhor que Jesus prometia, durante a sua pregação.

Esse movimento, apesar de ter começado por judeus que acreditaram na ideia de um futuro paradisíaco das histórias que ouviam falar, foi a oportunidade para os líderes europeus. A estratégia já não era a de impedir, mas sim, controlar. Para evitar mais conflitos e conseguir controlar a expansão dos crentes, que ia se proliferando desde Israel até  os territórios europeus, na Itália,  o imperador Constantino permitiu a  manifestação daqueles grupos em suas cidades. Por isso, para os romanos, havia a necessidade de usar os textos que sustentavam a fé desses seguidores de Cristo, que em latim chamaram de “os cristãos” = os seguidores de Cristo) e criar um conjunto de normas segundo seus interesses – a bíblia- para quem aderisse o novo movimento.

Os eruditos romanos, que nessa altura já dominavam o que os judeus tinham escrito, começaram um projecto de selecção do que serviria para o livro e o que ficaria de fora; a essa edição de textos chamou-se Cânone.

A palavra cânone provém do grego kanon, que significa “medir à régua”, dando a ideia de que tudo o que estava escrito pelos hebreus teria de passar por uma rígida análise dos eruditos da igreja, que acabara de ser fundada. Essa ideia foi, primeiramente, promovida por Marcião de Cinope, um ex-bispo que contrariava as narrativas do Antigo Testamento em relação as do Novo. Para ele, o Deus descrito na antiga aliança( Antigo Testamento) não correspondia  ao pai de Jesus, mencionado no Novo Testamento. Dizia que o Deus apresentado nos antigos rolos era mau e o segundo era bom.

Essas ideias foram influenciadas pela religião persa, chamada Zoroatrismo, que apresentava um deus da luz e outro das trevas. O próprio apóstolo João, um dos autores do Novo Testamento teve influência da literatura persa, atendendo ao estilo de escrita dos seus livros. O evangelho de João é o único dos chamados canónicos- seleccionados para o Novo Testamento, que  narram sobre Jesus, sem  fazer uma sinopse  ou introdução biográfica da vida do mestre. Era o estilo persa de escrever. Por esse motivo não é um dos evangelhos sinópticos.

Voltando a Marcião, ele propôs a criação de uma separação dos manuscritos hebreus, o Antigo Testamento e os  escritos, totalmente, na língua  grega,  o Novo Testamento. Foi também Marcião quem deu início à separação entre o judaísmo e o cristianismo, que durante muitos anos, partilhavam adeptos.

Marcião foi o primeiro a escolher  que livros seriam aceitos. Tanto que, do livro de Lucas, ele retirou as partes que mencionavam os antigos profetas, ficando apenas os que falavam dos dias de Jesus. Escolheu também dez livros atribuídos a Paulo. Apesar de Marcião já estar separado da igreja primitiva, a sua ideia de separar as crenças foi adoptada por outros líderes que deram continuidade ao processo de selecção final. Essas alterações seguiram-se até o século 16, com a reforma protestante. Os católicos decidiram juntar 73 livros e os protestantes 66, que são usados por outras denominações cristãs não católicas.

Obviamente, com a escolha de certos livros pelos romanos, os judeus rejeitaram tal proposta, tendo  ficado com aquela parte que consideravam ser os livros verdadeiros, que reflectiam suas vontades, costumes  e necessidades: a Torá ( livros do chamado Antigo Testamento). O Cântico dos Cânticos, por exemplo, não consta da bíblia judaica  por ser considerado um livro erótico e, possivelmente, escrito por uma mulher. Algo que ia contra os costumes judaicos.

QUAL FOI A CONSEQUÊNCIA? 

Existem várias bíblias no mundo cristão: a judaica; a Etíope; a católica; a ortodoxa e a protestante.

SOBRE JESUS

Os manuscritos originais que contavam sobre história de Jesus, sua família e discípulos eram mais de 80 , porém, quando os romanos, ao fundarem as bases do cristianismo, fizeram o Cânone bíblico, que é a selecção dos livros que entrariam naquilo que veio a chamar-se bíblia,  escolheram apenas quatro deles, os conhecidos evangelhos. Os outros foram considerados não autênticos ou apócrifos.

MUDARAM-SE AS NARRATIVAS?

No livro de João, uma das histórias mais comentadas é a de Jesus ter criticado os fariseus sobre a tentativa de apedrejamento contra a mulher adúltera, que seria apresentada à multidão. O texto diz:  ” Aquele que dentre vois está sem pecado, que seja o primeiro e atire a primeira pedra.” Apesar de hoje ser encontrada na bíblia, essa passagem não constava dos manuscritos antigos. A famosa frase foi acrescentada no século 5 d.C, cerca de 400 anos depois da sua morte. O primeiro texto que  incluiu a pseudo afirmação atribuída a  jesus foi uma tradução dos gregos, conhecida como Codex Bezae.

Para os estudiosos da bíblia, essa obra não apresenta sequer o mesmo estilo de escrita como semelhante ao primeiro livro do autor João.

Antes mesmo da bíblia, vale lembrar que a prática de atribuir autoria aos textos é da cultura grega, os mesmos que fizeram a tradução para a sua língua. Muitas vezes, em outro tipo de literatura os nomes publicados não eram os dos reais autores, nem a fidelidade das palavras das línguas originais.  No caso da bíblia, escrita originalmente, em aramaico e hebraico, muitos termos foram alterados, segundo a cultura grega, e o mesmo, quando se traduziu para o latim. Por isso, muitos estudiosos são cépticos quanto aos autores reais da bíblia.

SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE 

O livro de Deuteronómio 23:17,18 apresenta uma citação, que parece ser uma condenação direta aos homossexuais: “Não haverá prostituta entre as filhas de Israel, nem sodomita entre os filhos de Israel. Não trarás o salário de uma prostituta, nem o preço de um cão à casa do Senhor, teu Deus, por qualquer voto; porque ambos são abominações ao Senhor”.

Ao observar a palavra “sodomita”, conclui-se que não se enquadra na aplicação que a igreja  deu aos dogmas. O termo “sodomita” não estava nos escritos originais na língua aramaica, mas foi adicionada quando se fez a tradução para o latim, sendo que antes,  já significou uma forma de  estupro consentido,  ganhou também o sinónimo de abusador  e, mais tarde, um prostituto e não homossexual. A conotação com a homossexualidade, veio tempos depois. Portanto, a condenação não era directamente aos homossexuais, mas sim aos homens que praticavam abusos, quer a homens quer a mulheres.

SOBRE A SUBMISSÃO DA MULHER 

No capítulo 14: 34-35 da carta aos coríntios, aparece uma passagem considerada misógina( ódio contra a mulher) que diz o seguinte: ” As mulheres devem permanecer em silêncio nas igrejas. Elas não podem falar, mas devem estar em submissão, como diz a lei. Se quiserem perguntar sobre algo, devem perguntar a seus próprios maridos em casa, pois, é vergonhoso para uma mulher falar na igreja”. Esse texto, lido no contexto, não faz sentido, porque no mesmo capítulo, homens e mulheres são chamados de irmãos, que tinham de  profetizar e falar em línguas. Se essas acções eram obrigadas a ambos, no mesmo cenário- a igreja- como, ao mesmo tempo, são proibidas de se expressar? Uma das primeiras aparições dessa passagem terá sido introduzida por um dos primeiros eruditos cristãos, que ao se cansar da sua esposa, colocou essa citação no livro, para se transformar em ” lei divina”, com objectivo de silenciar as mulheres. A prova de que tal passagem não era uma inspiração divina apareceu num manuscrito do século quarto d.C do livro de coríntios, onde se encontrou  uma nota escrita a lápis, em volta desses versículos, que dizem “esses são uma adição posterior que não constavam no livro original”. Sendo esses textos aumentados secretos até a sua descoberta, os cristãos acreditam que Paulo foi inspirado por Deus a escrever tais palavras.

Em outros manuscritos antigos, esses versículos aparecem em diferentes partes aleatórias. Afinal, não era uma passagem que estava organizada como a conhecemos.

Em 2016, um grupo de estudiosos apresentou o que chamaram “Versão Padrão em Inglês Permanente da Bíblia”, que prometia ser  “a palavra imutável de Deus”. Porém, logo no livro de génesis, notou-se   no capítulo 3:16, que fala sobre a maldição de Deus a Eva, diz o seguinte: Teu desejo será para teu marido, ele te dominará”. Mas, a nova versão diz” teu desejo será CONTRÁRIO ao teu marido, mas ele te dominará.

Ao olharmos aos detalhes,  o texto sugere que a mulher estava condenada por Deus a ter um casamento dominado pelo marido, eternamente, ainda que não concordasse com  ele, teria de sofrer em silêncio. Apesar das críticas dos leitores feitas à nova narrativa, os tradutores mantiveram a sua posição em manter o texto que coloca a mulher como uma pessoa que merece sofrer, com seu próprio consentimento.

Até os nossos dias, milhões de mulheres no mundo crêem que Deus inspirou o homem a escrever tais “leis” que a remetem na condição de submissa.

Se em pleno século XXI, as novas traduções fazem tais afirmações, imagine como era nos primeiros séculos de escrituras sobre as chamadas “leis de Deus”.

Dentre vários, esses são alguns exemplos da vontade ou inspiração do homem, para escrever a bíblia, apresentada como  inspiração divina.

 

Miguel Manuel – Jornalista

 

1 COMMENT

  1. Miguel Manuel, é um Jornalista angolano, “mais alguma coisa qualquer”… No seu jornalismo investigativo e educativo “abertura de mentes” tem se dedicado às causas nobres sobre os porquês da nossa existencia e cultura! Sobre os saberes ocidentais institucionalizados universalmente como dogmas “erudito”… Sobre a cultura universal e, em particular sobre a África. Este é mais um dos seus trabalhos com propósito de tão somente refletirmos sobre a “definição do mundo”.

    É um pensador nato “fora da caixa”…

    Desde já o parabenizo pela sua entrega em causas nobres e recomendo a todos a sua cuidada leitura e mais, Ele, deixa “pontinhas soltas” fios condutores para futuras pesquisas.

    Bem haja.

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